sábado, 2 de junho de 2012

Não me deixe...


- Mas você não era criança demais quando passou na tv?

           Claro que era. Em 2000 ela havia acabado de completar 9 anos. Nem dois dígitos tinha sua idade e já buscava de maneira escondida viver aquela intensidade. Grande na altura e ainda pequena nas ancas, seus cabelos saiam das raízes quase loiros e as sobrancelhas pouco se notava. A vinheta começava e seus pais tratavam logo de mudar o canal buscado algo mais apropriado para a filha ainda inocente. Os pés gordos chocavam-se contra os tacos de madeira e da porta do quarto ela gritava um boa noite insuspeitável. A noite seria ótima. Quase sempre com suas calcinhas de algodão e os mamilos miúdos e rijos pontando na camiseta infantil, ela tratava de abaixar o volume da tv no zero para que não ouvissem vozes e interrompessem sua interpretação. Os olhos grandes e quase verdes nem piscavam. Não queria perder uma cena sequer dos capítulos em que Anita entregava-se a Nando, a Armando e a Zezinho. Lenina sorria a cada vez que o rosto da atriz surgia na tv. Conseguia se imaginar naquele lugar, dentro daquelas roupas, casas, carros. Dentro de cada abraço e beijo, vivendo a mesma cena e sentindo as mesmas emoções. Assim que os ombros estreitos da atriz giravam na tela, ela copiava da maneira como conseguia, erguendo-se sob os dedos dos pés e ondulando os fios dourados na pouca luz que vinha da tv. O sorriso de ambas era o mesmo. Os dentes grandes, infantis, o cheiro de pele nova, o olhar de uma malícia quase inocente. Lenina não podia ouvir a música, mas copiava os passos de Anita como se conhecesse a melodia e como se vivesse a agonia lindamente cantada por Maysa Matarazzo.


01/06/2012

            Flashes de cenas vinham em sua mente enquanto o carro seguia fazendo aquelas curvas infinitas em uma estrada fria e contornada por árvores de eucalipto.
- O Nando tinha uma caminhonete também, não tinha? - ele perguntou sem olhar para o lado, segurando firme no volante e espremendo os lábios, um contra o outro.
- Hunrrum, ele tinha. – Verdade! O Nando também tinha uma caminhonete. Que seja, nada que possa ser muito significativo. Álias, claro que era significativo. Ele lembrava. Lembrava daquilo que ela mais amava, os detalhes. Continuou fazendo cara de nada e observando a paisagem tão interessante quanto seu olhar perdido e seu sorriso apático. Porque ele tinha que lembrar?
- Canta para mim, canta? - Pediu com um sorriso safado no rosto, aquele mesmo sorriso que ele sempre esboçava quanto tocava os bicos arrepiados dentro de seu decote discreto. Ela pensou por alguns instantes relutante, mas na verdade só esperava a introdução mental daquela tragédia.
-... Ne me quitte pas Il faut oublier. Tout peut s'oublier...     
                  
           E finalmente ela estava lá. Vivendo cada doloroso capítulo que há anos havia assistido pela tv. Lenina só não imaginava o quanto era triste ser Anita, Cíntia e quem pudesse ser para aquele homem que, assim como Nando, a tomava feito um taxi e descia na esquina sacudindo as calças. 


[Playlist: Maysa Matarazzo - Ne Me Quitte Pas ♪]





E quando vem chegando a noite,

Com um céu flamejante.

Vê como vermelho e o negro se casam

Para que o céu se inflame.

;**



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