- Mas você não era criança demais quando passou na tv?
Claro que era. Em 2000 ela havia acabado de completar 9 anos.
Nem dois dígitos tinha sua idade e já buscava de maneira escondida viver aquela
intensidade. Grande na altura e ainda pequena nas ancas, seus cabelos saiam das
raízes quase loiros e as sobrancelhas pouco se notava. A vinheta começava e seus
pais tratavam logo de mudar o canal buscado algo mais apropriado para a filha
ainda inocente. Os pés gordos chocavam-se contra os tacos de madeira e da porta
do quarto ela gritava um boa noite insuspeitável. A noite seria ótima. Quase
sempre com suas calcinhas de algodão e os mamilos miúdos e rijos pontando na
camiseta infantil, ela tratava de abaixar o volume da tv no zero para que não
ouvissem vozes e interrompessem sua interpretação. Os olhos grandes e quase
verdes nem piscavam. Não queria perder uma cena sequer dos capítulos em que
Anita entregava-se a Nando, a Armando e a Zezinho. Lenina sorria a cada vez que
o rosto da atriz surgia na tv. Conseguia se imaginar naquele lugar, dentro
daquelas roupas, casas, carros. Dentro de cada abraço e beijo, vivendo a mesma
cena e sentindo as mesmas emoções. Assim que os ombros estreitos da atriz
giravam na tela, ela copiava da maneira como conseguia, erguendo-se sob os
dedos dos pés e ondulando os fios dourados na pouca luz que vinha da tv. O
sorriso de ambas era o mesmo. Os dentes grandes, infantis, o cheiro de pele
nova, o olhar de uma malícia quase inocente. Lenina não podia ouvir a música,
mas copiava os passos de Anita como se conhecesse a melodia e como se vivesse a
agonia lindamente cantada por Maysa Matarazzo.
01/06/2012
Flashes de cenas vinham em sua mente enquanto o carro seguia
fazendo aquelas curvas infinitas em uma estrada fria e contornada por árvores
de eucalipto.
- O Nando tinha uma caminhonete também, não tinha? - ele
perguntou sem olhar para o lado, segurando firme no volante e espremendo os
lábios, um contra o outro.
- Hunrrum, ele tinha. – Verdade! O Nando também tinha uma caminhonete.
Que seja, nada que possa ser muito significativo. Álias, claro que era
significativo. Ele lembrava. Lembrava daquilo que ela mais amava, os detalhes.
Continuou fazendo cara de nada e observando a paisagem tão interessante quanto
seu olhar perdido e seu sorriso apático. Porque ele tinha que lembrar?
- Canta para mim, canta? - Pediu com um sorriso safado no
rosto, aquele mesmo sorriso que ele sempre esboçava quanto tocava os bicos
arrepiados dentro de seu decote discreto. Ela pensou por alguns instantes
relutante, mas na verdade só esperava a introdução mental daquela tragédia.
-... Ne me quitte pas Il faut oublier. Tout peut s'oublier...
E
finalmente ela estava lá. Vivendo cada doloroso capítulo que há anos havia
assistido pela tv. Lenina só não imaginava o quanto era triste ser Anita,
Cíntia e quem pudesse ser para aquele homem que, assim como Nando, a tomava
feito um taxi e descia na esquina sacudindo as calças.
[Playlist: Maysa Matarazzo - Ne Me Quitte Pas ♪]
E quando vem chegando a noite,
Com um céu flamejante.
Vê como vermelho e o negro se casam
Para que o céu se inflame.
;**
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